Quanto ao rei João, a tristeza lia-se-lhe no olhar
cabisbaixo. As palavras amargas, fruto do enorme desgosto que sentia, foram
surgindo, e Irina não escapou às sentenças cruéis a que o pai tinha exposto
toda a corte. Se a revolta era grande, agora, mais do que nunca, era praticamente
impossível suportar tudo o que a rodeava. A dor que sentia já era, só por si,
algo devastador, mas, mais devastador ainda era ouvir as baboseiras frias que o
pai teimava em descarregar a torto e a direito, fosse em cima de quem fosse.
Estava a sofrer, ela sabia disso, mas, ela também estava a sofrer, muito, e
quem a poderia ajudar? Ninguém! Com o pai num estado de pura angústia, sem a
mãe, e ainda por cima filha única, estava por sua conta e risco, no entanto,
não podia fugir, não podia libertar-se agora e deixar o pai nas mãos alheias
que o iriam levar, muito provavelmente, à doença, ou quem sabe, até mesmo à
morte…
Irina não teve uma adolescência fácil! A vida às vezes é
matreira e, para Irina, foi até mesmo, bastante injusta. A falta do carinho da
mãe, a falta das conversas “femininas” que mãe e filha tinham de quando em
quando, os porquês que ainda estavam por responder, as dúvidas, as incertezas
próprias da idade, os desejos ou até mesmo a sede de liberdade que por mais que
fosse parecia tardar. Irina sentia-se a desesperar, a cada dia que passava era
mais difícil manter-se ali, hirta, fazendo de conta que tudo estava bem. O
sorriso estava cada vez mais desvanecido e a alma cada vez mais distorcida por
mil e uma coisas, algumas delas verdadeiras complicações, crises passageiras
pelas quais todos os adolescentes passam (sem excepção). Aprender a lidar com a
dor é, só por si um enorme obstáculo, duro de ultrapassar. O tempo abre umas
feridas e cura outras, é como que um ciclo giratório simples ao qual nós nunca
nos iremos habituar, por mais que o façamos irá sempre causar impacto.
Se me perguntarem se Irina era feliz naquela altura,
responder-vos-ia que talvez ela não fosse feliz, talvez ainda não tivesse
maturidade suficiente para lidar com os pequenos e grandes desastres que a vida
já lhe proporcionou, talvez ainda não passasse de uma pequena aspirante a
princesa, jovem, solteira, com um coração imenso mas, sem dono.
Certo dia, Irina, domada pelo desespero, decide sair de casa
e ir ao encontro da tão desejada liberdade que havia procurado durante anos
mas, sempre sem sucesso. Fugir seria um acto que muitos considerariam
inconsciente. Talvez fosse, ou talvez não. Ela sabia que este acto,
inconsciente ou não, lhe traria consequências, aliás como todos os nossos
actos, mas, a grande questão era: Estaria ela disposta a arcar com as
consequências de tal acto?! Talvez sim, talvez não, mas, ainda era muito cedo
para se saber a resposta correcta a esta pergunta.
Arrumou um monte de roupas numa mala velha, empoeirada há
muito pelas habituais teias de aranha do sótão, juntou algumas peças de valor
para ela e despediu-se daquele quarto gigante que já conhecia de cor e
salteado. Agora estava entregue ao destino, sobreviver era um dos obstáculos,
saber como sobreviver era a meta que ela teria de alcançar para um dia
conseguir ser aquilo que sempre ambicionou ser, FELIZ!
Preparou uma corda feita de lençóis, amarrou-a à ponta da
cama, atirou as suas coisas pela janela do quarto (que ficava nas traseiras do
castelo) e, desceu por ali abaixo, pronto para dar um novo rumo à sua vida.
Corajosa não?! É claro que o medo a assombrava, iria ter de ultrapassar muitos
dos pavores que foi desenvolvendo ao longo dos tempos, agora só dela dependia a
sua vida, só ela poderia descobrir o que era certo e errado, só ela tinha o
poder de decisão, mas, não seria ela a única a sofrer as consequências! Depois
da fuga, esgueirou-se pelo bosque. O medo aterrorizava-a, mas, o que fazia dela
uma pessoa corajosa não era não ter medo, era o facto de ela ter medo e de o
crer combater, isso sim é a verdadeira coragem.
O rei João só se apercebeu do sucedido horas depois. Tal como
seria de esperar, o pânico apoderou-se dele e, quase de imediato ordenou aos
seus guardas que fosses procurar filha, a última pessoa que ele esperava que o
abandonasse.
Irina entranhou-se por entre bosques e clareiras e, nunca
mais ninguém a viu. Passaram-se dias, meses, anos, o rei estava velho e já sem
esperança de voltar a ver a sua filha antes de partir. Possivelmente Irina não
pensava voltar. O trono e a realeza nunca foram nada que a fascinasse, sempre
se preocupou em ser ela própria, em respeitar todos os que a respeitavam, em
viver uma vida pacata, desvalorizando sempre os bens materiais e dando muita
importância aos sentimentos que a iam confrontando.
O rei João, que entretanto falecera, havia deixado escrito no
seu testamento que, apesar de tudo o que Irina lhe fez, e do imenso desgosto
que lhe causou ao fugir, naquela noite de Verão, os seus bens ficariam
entregues a ela e que, se um dia ela quisesse voltar ao castelo, as portas
estariam sempre abertas e o seu quarto sempre pronto para a receber.
Continua...
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