João era então o actual rei, casado com Isabel (a rainha)
através de um acordo entre famílias, há cerca de duas décadas atrás, era um rei
fiel à sua pequena grande aldeia, onde todos os habitantes lhe tinham muito
respeito e grande consideração. Não era o género de rei mau, tipo aqueles das
histórias com seres fantásticos e sobrenaturais. O rei João era um rei dedicado
ao povo, àqueles que precisavam. Amava Isabel, provavelmente aprendeu a amá-la
com o tempo. Casaram muito novos, as suas famílias conheciam-se já há algum
tempo mas, João e Isabel apenas se conheceram no dia do casamento que as suas
famílias lhes haviam aprontado. Desconhecidos natos, sem qualquer tipo de
sentimento em comum e um pouco envergonhados, viram-se obrigados a cumprir com
aquilo que alguém tinha decidido por eles, ser o seu futuro. Tiveram de aprender
a conhecer-se, a viver uma vida em comum, a respeitar-se (principalmente nas
suas diferenças), a amar-se, ainda que não fosse a tarefa mais fácil. Mas,
agora Isabel estava doente e o rei nada mais podia fazer do que continuar ao
seu lado e garantir que nada lhe faltava, nomeadamente todos os remédios e
regalias. Não queria perdê-la, sabia que ela lhe fazia falta, sabia que
precisava dela para o ajudar a cuidar e educar a filha, a princesa Irina, que
era ainda tão nova. Uma menina deslumbrante, ingénua, inofensiva, desprotegida…
enfim, uma menina que ainda não sabia distinguir o bem do mal e, a quem nunca
faltou com nada.
Talvez essa opressão, esse cuidado imenso e infundado em
proteger Irina, a tenham impedido de voar, de alargar os seus horizontes e de conhecer
melhor o mundo que a rodeava e que, apesar de algo perigoso, também era muito
belo e digno de ser apreciado. Ao crer protegê-la, o rei João acabou por
aprisioná-la, num mundo pequenino e limitado, sem espaço suficiente para ser
feliz. Irina acabou por crescer oprimida entre horizontes fechados,
desconhecida de um mundo enorme, na consciência imatura e na ilusão causada
pelo desejo de querer conhecer mais do que aquilo que sempre lhe fora possível.
Sonhar era a sua maior arma, a melhor forma de se abstrair da prisão que
sentia, o melhor modo de se sentir livre daquele mundo rotineiro que já
conhecia de cor e salteado. Precisava de mais, sonhar não bastava, precisava de
saber se os seus sonhos correspondiam realmente à verdade ou se, pelo contrário
não passavam disso, de sonhos sonhados por uma jovem princesa deslumbrante de
que todos ouviam falar mas que tão poucos conheciam…
A rainha Isabel sobreviveu à peste e manteve-se no trono
durante mais alguns anos mas, não podia desdizer o rei João, apesar de
compreender o sofrimento da filha e de compreender que ela precisasse de
conhecer melhor o mundo à sua volta, nada podia fazer para que isso fosse
possível, o rei era quem sempre tinha a primeira e a última palavra e, por mais
que quisesse, não podia contrariá-lo nem tão pouco aconselhar a filha a
desobedecê-lo.
Resignadas aos seus pequenos horizontes, aos seus mundinhos
ilusionistas, mãe e filha viveram sempre sobre o controlo de um marido e de um
pai preocupado, cuidadoso, mas que nunca as deixou conhecer os verdadeiros
prazeres da vida.
Irina cresceu, mas, à medida que os anos aumentavam,
aumentava também a sua curiosidade e revolta por nunca ter conhecido bem aquilo
que a rodeava e que a poderia fazer muito feliz.
Revoltada com a ideia do pai sempre a ter protegido tanto e
nunca a ter deixado ser quem realmente devia e queria ser, Irina estava
profundamente determinada a impor-se e a impedir que alguém, excepto ela,
mandasse na sua vida (ainda muito imatura e irresponsável).
Queria fugir, queria sair daquele castelo enorme onde a
tinham feito viver dia e noite durante imenso tempo, tempo demasiado. Estava na
hora de seguir o seu próprio rumo, de aprender às custas dos seus erros, de ser
alguém com vontades próprias, de seguir os seus instintos, estava na hora de
ser feliz!
A rainha, que entretanto falecera, deixou saudades,
especialmente em Irina. Mais do que uma rainha, Isabel era mãe, uma mãe doce e
orgulhosa, uma mãe que apenas queria a felicidade da filha e que, por mais que
a quisesse ajudar a concretizar essa felicidade, não podia. Talvez tenha
morrido com a mágoa de ter deixado a filha sozinha, entregue a um pai que tudo
fazia para a proteger mas que, mesmo sem se aperceber a estava a impedir de
seguir o futuro feliz que tanto desejava. Um pai dócil, simpático, mas, teimoso
demais para permitir que os demais se intrometessem na educação da sua filha,
excluindo quaisquer conselhos que viessem de fora. Isabel foi, para Irina, um
apoio. Ela sabia que a mãe nada podia fazer em seu benefício, mas, o carinho
reconfortante com que sempre a tratou, a forma terna como lhe afagava as
lágrimas, o sorriso contagiante e o orgulho imenso que não deixavam dúvidas,
faziam de Isabel uma mãe exemplar. Foi da boca dela que Irina ouviu os maiores
elogios, os maiores incentivos. Como poderia ela esquecer a pessoa que a trouxe
ao mundo, ainda que por vezes já tivesse desejado que tal nunca tivesse
acontecido, Irina sabia que, com o falecimento da mãe, uma parte dela também
iria murchar, talvez agora a força e a garra com que todos os dias acordava, já
não fossem as mesmas, talvez agora o sorriso se desvanecesse mais facilmente o
brilho no olhar se tornasse quase despercebido. Talvez agora que estava sozinha
não conseguisse resistir ao sufoco que era aquelas quatro paredes, aquele
quarto escuro onde passou metade da sua vida, dias e noites a fio, sempre
sonhando, sempre encorajada por uma pessoa que agora já só poderia fazer parte
do seu álbum de recortes, da sua memória, da sua história, Isabel.
Continua...
P.S.: Estão a gostar??
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